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O Unicórnio

O dia a dia de um Unicórnio. Suas inspirações, aventuras e desaires.

O dia a dia de um Unicórnio. Suas inspirações, aventuras e desaires.

O Unicórnio

15
Set16

O primeiro dia de aulas foi bom? Fico contente por vós. Muito.


O Unicórnio

Vestia uma blusa azul, calças de ganga e All Star. Não levava mochila, só um caderno A4 de capa preta e uma bic laranja. Era o meu primeiro dia de aulas numa escola pública e sentia-me como se fosse fazer uma colonoscopia.

Depois de alguns anos no Colégio de Santa Maria - tradicional, rigído e com algumas meninas  emproadas com quem não me idenfitificava -  finalmente ( e graças a Deus e a todos os seus Santos), iria para o ensino público. Sentia-me enfartada de tanta freira, tanta missa, de tanta comida sem sal, da bata de fazenda em pleno verão, de tantos preceitos e mariquices, e principalmente, de tanto mulherio.

Os nervos e a ansiedade foram sempre o meu inimigo número um. Escusado será dizer que a madrugada que antecedeu o primeiro dia de aulas na Escola Secundária do Entroncamento, foi passada em claro, a rezar Avé Marias e Pai Nossos, mendigando-Lhe que me ajudasse a ser aceite naquele liceu.  Tinha medo de não me integrar, não sabia nada de moda, de maquilhagem, de cabelos, de música e muito menos de rapazes. Nunca tinha tido colegas de carteira com pila, só patarecas a rodos sempre aos guinchos e aos pulos feitas parvas, e tudo seria novo naquela escola do capeta (no  bom sentido).

À entrada ficava a polivalente. Um recinto amplo com um pequeno palco e uma escadaria que servia de ninho aos adolescentes mais populares. Ao lado, o refeitório, e num corredor paralelo afixados nas paredes com pioneses coloridos, os horários de todas as turmas.

Um dos auxiliares, o Sr. Neves, que andava sempre com um sapato esfrangalhado e com os cantos da boca a espumejar, recebia os veteranos e os caloiros com uma hostilidade encenada, pois era a sua tática de manter o respeitinho e a distância daqueles adolescentes borbulhentos com as hormonas aos saltos.

Entrei na polivalente.  Respirei fundo e palavra, que o meu último suspiro foi ouvido em eco! Toda a minha jovem carcaça exalava medo e aqueles predadores de olfato apurado, deram logo por mim. Senti-me caça, um Bambi esquecido na floresta à procura de sua mãe, um Winnie de Poo desprotegido e abandonado no escuro, com uma feridinha na perna. Ninguém sabia que tinha vindo de uma escola particular, excepto duas raparigas ex-alunas do colégio que tinham saído anos antes de mim  e com medo que as denunciasse, (dado que agora eram tidas com as mazonas da escola), fizeram-me a vida negra nos primeiros meses. Perseguiam-me, insultavam-me e ameaçavam-me com tau tau, caso dissesse a alguém que anos atrás, tinham sido meninas de coro. O karma é lixado e a vingança veio mais tarde. Adiante.

 

Os alunos dividiam-se por grupos. Os betos, os metaleiros, os assim-assim, os cromos e o grupo dos que já tinham bigode, borbulhas com pus branco no queixo, óculos fundo de garrafa, dentes tortos, calças de tyrilene compradas no mercado e sapatilhas “Naike”. Não me inseri em nenhum dos grupos, apesar de ter características de todos.

 

Betos: Os rapazes vestiam pólo da Burberrys comprado no mercado, calça de ganga Levis, sapato vela. Elas, pólo da Benetton, argolas e fio de prata, cabelo aloirado. Tomavam banho todos os dias, forravam os dossiers com papel autocolante e tinham um estojo todo bonitinho comprado numa papelaria pela avó ou pela mãe. Chegavam à escola de carro e davam um beijinho de despedida aos papás. Bons alunos, eram os que subornavam os professores com elogios, sorrisos e enalteciam as profissões dos papás. Gostavam de ganzas.

 

Metaleiros: Mesmo com 40ºC vestiam camisola e calça preta preta apertada com alfinetes na lateral, tinham cabelos compridos lavados uma vez por semana e gostavam de abanar a cabeça ao som de gajos que regurgitavam e saltavam em cima do palco, enquanto faziam como que num ritual, um gesto com dois dedos, um sinal de reverência ao capeta, também conhecido por Ozzy Osbourne. Adoravam guitarras e eram exímios a tocar guitarra invisível. Diziam que adoravam o diabo, mas cagavam-se de medo quando faltava a luz em casa. Gostavam de snifar cola UHU e fumavam ganzas.

 

Assim-assim: eram tão tímidos, reservados e assustados, que há quem afirme que existam somente dois ou três exemplares desta espécie. Não há avistamento suficiente desta raça para que se possa fazer uma descrição sólida e verossímil.

 

Cromos: nunca faltavam às aulas, mas denunciavam os que faltavam. Eram bons alunos, mas egoístas e sovinas. Sentavam-se na primeira fila e no início do ano letivo já tinham lido a matéria a estudar. A maioria ambicionava entrar para Direito, História,  Ciências Farmacêuticas ou Medicina. A maioria toma antidepressivos e não consegue arranjar emprego por excesso de habilitações.

 

Entrei na polivalente, devagar, a medo. Ao longe, vi uma moça conhecida que vivia na  minha terra e para ela me dirigi aos saltinhos, feliz e contente por ver uma cara conhecida.

Era o meu primeiro dia de aulas. Era o meu primeiro dia de aulas naquela escola apinhada de rapazes e raparigas, críticos e maus. Pisei um atacador. Caí. No meio da polivalente. De joelhos. No meu primeiro dia de aulas.

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