As aldeias têm sempre gente muito estranha...
O Unicórnio
Há muitos e muitos anos atrás, chegou à aldeia uma companhia de circo itinerante. Montaram a barraca na campina e anunciaram pelas ruas, “o maior espectáculo do mundo”.
Ora, não me indaguem sobre a veracidade da história porque a mesma aconteceu há mais de cinco décadas e o que sei e partilharei convosco, foi-me descrito por terceiros. Portanto considero-me isenta de responsabilidades, caso a mesma não corresponda de todo, à verdade.
Esta companhia - tal como todas as companhias de circo que percorriam as aldeias - era constituída por uma família de gente peculiar. A matriarca, mulher de barba e corpo rijo, desconfiada e sinistra, ao ser afrontada por um azinhaguense que por ela passou e que não conseguiu ter tento na língua, deu logo a entender que não era mulher de se ficar. O pobre do homem, nunca tinha visto uma mulher com barba e precipitou-se a comentar em voz alta para quem quis ouvir:
- “Mulher de barba era o que cá fazia falta cá na Azinhaga! Parece o cú de uma mula!” – gritou.
Ora, a brutamontes não teve meias medidas: desmontou-se do camelo que com sacrifício a carregava, e espetou três galhetas no homem, deixando-o com o nariz e um dente partido.
Tal como referi, a companhia de circo era formada por uma única família. A matriarca, esta grande bruta, era casada com um anão de cabelos até aos pés, mestre de cerimónias, malabarista e trapezista.
A avó da família, mãe da bruta, era feiticeira. Marreca e cega, dava consultas de tarot de porta em porta durante o dia, e nas noites de espectáculo, tocava trombone e, pasmem-se, executava números de contorcionismo.
Havia uma filha, a domadora de leões, a única da família sem problemas físicos e mentais. Diz, quem me contou a história, que a cachopa era linda como a Nossa Senhora: de cabelo comprido, loiro como o trigo, de profundos e vivaços olhos azuis, mas de substância e miolo esfaimado, tal belzebu em época de cio, pois inflamava tudo o que tivesse pila.
Dispensável será dizer que na aldeia não se falava noutra coisa e que todos esperavam pela primeira noite de circo. Uns, porque nunca tinham ido ao circo, outros, porque nunca tinham visto um anão e uma mulher barbuda, e a maioria, porque a rapariga era tão bonita que queriam vê-la de perto.
Deu-se a estreia e tudo correu tranquilamente. Cada artista cumpriu o seu papel, sem lapsos ou deslizes e o povo foi para casa, festivo e boquiaberto. Os homens, deitaram a cabeçorra na almofada e sonharam com a cachopa, as mulheres, amolaram as facas de cozinha, tal os ciúmes que sentiam dos maridos.
Por norma, estas companhias itinerantes estabeleciam-se nas povoações durante alguns meses, e lá ficavam até não haver público para o espectáculo. Ora, como já presumiram, a protagonista desta história é a domadora que tinha como rotina, passear-se durante o dia pela aldeia, montada num leão, submisso e obediente como um gato.
Os homens, sentados na praça, depois de um dia extenuante no campo, valiam-se para por a conversa em dia, mirando de soslaio a moça que se passeava pela aldeia a cavalo num felino.
Um desses homens era o Alfredo. Rapaz bronzeado, bem apessoado, de traços trigueiros e encantador, mas que tinha tanto de encanto como de emproado. Altivo, mulherengo, desordeiro, era um autêntico “cafajeste”. Secretamente acumulava o anseio de abeirar-se da rapariga e de lhe espetar um beijo nas trombas, pois seria mais uma para a sua interminável lista de conquistas.
Numa tarde em que o sol queimava à parva, a cachopa foi com o felino até ao rio Almonda para se banharem. A passo lento, atravessaram a aldeia até ao curso de água. À espreita, estava Alfredo.
Ao chegarem, moça e leão beberam água e de repente a rapariga sentiu que a apertavam na cintura. Era Alfredo, esse grande cabrão! Agarrou-a à força, indiferente ao gritos desesperados da rapariga clamando ajuda.
Não julgue o homem, que leão que se deixa acavalar, afagar e passear como se fosse um cão, gato ou porco, esquece o seu lado bravio. Não, não esquece, só o abafa. De uma só patada, cortou a garganta ao Alfredo, estando já morto quando caiu ao chão.
A rapariga e o seu animal fugiram, deixando o falecido a esvair-se nas marachas do rio, rodeado de populares que ouviram os gritos da rapariga. Ninguém a perseguiu procurando justiça e o circo abalou da aldeia. Naquele lugar, passados tantos anos, ainda florescem dentes-de-leão da cor do sangue e se acharem porventura que é não passa de uma simples coincidência, estão enganados.
Ainda hoje lá passei e colhi um par que embelezam as jarras cá de casa.
Fotografia da bruta, cedida pela pessoa que me contou a história.